Falar de bacalhau é, por estranho que pareça, falar da história de Portugal. Atrás do alimento esconde-se a história de um país que da sua pequenez fez-se mundo para depois se tornar pequeno, riquíssimo no seu justo tamanho.
Falar de bacalhau em Portugal é falar de família, de convívios, de Natal; mas também é falar dos Descobrimentos Portugueses, do Estado Novo, da revolução de 25 de Abril de 1974. É uma viagem às memórias, as particulares e as colectivas, um pouco esquecidas e que importa resgatar.
Falar de bacalhau é finalmente falar do Porto, que se o meu sotaque é orgulhosamente tripeiro, a minha língua é o português; e cá existem antiquíssimas casas de bacalhau, que a seu tempo abordarei. Para já, vou responder a esta pergunta que me colocam insistentemente todas as semanas – a qual não quero, precisamente, deixar em águas de bacalhau 🙂
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Como é que o bacalhau surgiu em Portugal?
Já no século XVI encontramos registos das frotas portuguesas que pescavam bacalhau nas costas da Terra Nova (actual Canadá), que se acredita ter sido descoberta por navegadores portugueses. A pesca do bacalhau aparece, assim, intimamente associada ao apogeu das viagens marítimas portuguesas.
Sendo o bacalhau um peixe de águas frias, era conservado em sal de forma a suportar a longa viagem de regresso. A Marinha inglesa fornecia protecção a estas frotas de pesca a troco de sal, um bem extremamente valioso na época, e que Portugal produzia em grandes quantidades.
Curiosamente, a pesca de bacalhau, no século XVI dominada pelos portugueses, escapa-se-nos das mãos durante os séculos seguintes, praticamente até ao início do século XX.
Quer pela acção adversa das frotas inglesas e espanholas, quer pelo desinteresse da Coroa portuguesa (de olhos postos no Oriente), o bacalhau deixou de ser pescado pelos portugueses, sendo o país abastecido pelo “bacalhau inglês”.
O advento do Estado Novo mudou radicalmente a situação. Sendo a carne demasiado cara e havendo problemas de abastecimento de peixe fresco no interior do país, o bacalhau era um alimento central na dieta das camadas mais populares.
De tal forma se tornou uma questão fundamental para o regime, que se deu início à chamada Campanha do Bacalhau, que visava aumentar a capacidade de produção interna, diminuindo a dependência das importações de bacalhau.
Toda a operação era controlada pelo Estado, que fixava os preços, garantia a mão de obra barata e disciplinada (através de recrutamentos coercivos junto das chamadas Casas de Pescadores), providenciava financiamento barato aos navios e armadores e condicionava as importações.
Em 1942 implementou-se um programa de renovação da frota bacalhoeira, que passou de 34 navios (1934) para 77 (1958). Assim, em apenas algumas décadas mais de 80% do consumo de bacalhau em Portugal era assegurado pela produção interna.
De tal forma era vital a nossa frota bacalhoeira que os homens que se voluntariassem para nela trabalhar ficavam isentos do serviço militar obrigatório.
O pescador de bacalhau foi elevado à categoria de herói da pátria, justo herdeiro dos navegadores que haviam levado o nome Portugal além mar.
A vida dos marinheiros portugueses a bordo dos bacalhoeiros
Desengane-se contudo a aura gloriosa destes homens. Chegados à Terra Nova, a pesca era feita em pequenas embarcações chamadas Dóris, onde só ia um homem.
Por vezes apartados do navio em mais de duas milhas, solitariamente procediam à pesca em linha durante jornadas de 8/10h, face a condições atmosféricas tremendas.
O retorno das dezenas de Dóris ao barco principal dava origem à segunda parte do trabalho, igualmente morosa: era necessário escalar todo o peixe apanhado e proceder à sua salga imediata no porão.
Era uma vida de sacrifícios, sujeita aos caprichos do mar, a um soldo baixo e à distância à pátria.
O fim da ditadura salazarista e o seu impacto na indústria bacalhoeira
Com a liberalização das importações e dos preços, no final da década de 60 a pesca de bacalhau acusava já indícios do que se seguiria. O 25 de Abril trouxe o fim do regime laboral violentíssimo a que estavam sujeitos os pescadores, e o estabelecimento de zonas económicas exclusivas foi a machadada final nesta indústria.
Limitadas as águas, sem acesso a mão de obra experiente a baixos preços e em competição com os mercados internacionais, acabou-se a pesca portuguesa do bacalhau.
Os preços subiram de tal forma que hoje já não se compram bacalhaus inteiros, como no tempo dos meus avós. E, se a abundância não é a mesma, conforta-me que o bacalhau conserve um lugar muito especial à nossa mesa, já livre de conotações sociais depreciativas, aplaudido por todos os turistas que nos visitam.