Nunca me tinham ocorrido as clarabóias do Porto, ignorante delas no dia a dia apressado, em que o relógio se nos impõem mais importante do que o que se passa no céu. Mas desde que esta pergunta me foi colocada que o meu olhar paira a alguns metros do chão. É de lá que vos escrevo.
A história das clarabóias do Porto
O Paulo foi-me apresentado como um fotógrafo apaixonado pelas clarabóias do Porto, que se dedica a fotografá-las há 30 anos. “As clarabóias são as minhas musas. Dedico-me a encontrá-las, a descobrir o melhor ângulo para as fotografar, a esperar a luz perfeita para o fazer.
É um trabalho de amor e de paciência – passaram-se 30 anos, mas não os senti como muito tempo”. Entretanto, juntou-se ao Paulo uma fotógrafa brasileira, a Luciana Bignardi, e junto criaram o projecto Anima Luminária, sobre Clarabóias, lanternins e outras lumeeiras da cidade do Porto.
O Paulo prossegue no mesmo tom apaixonado: “o Porto é um caso único no mundo, não apenas pela quantidade de clarabóias que possui, mas pela variedade das mesmas. O porquê disto permanece um mistério para mim – o meu trabalho não é catalogá-las ou compreendê-las, mas captá-las no seu melhor momento. Mas gostava de saber a resposta a esta pergunta”. Estava lançado o desafio!
Dada a minha ignorância sobre o tema, pedi-lhe que me fizesse uma visita guiada às “suas” clarabóias do Porto. E lá fomos, mais a nossa-amiga-em-comum Catarina, à descoberta das clarabóias escondidas (na verdade, mais parecia uma excursão ao coração de África, tal era a minha excitação).
E não era para menos – as clarabóias do Porto são magníficas, em todos os adjectivos e adereços que as caracterizam. Trabalhadas ou toscas, modestas ou grandiosas, com ou sem remates de ferro trabalhado, bolas de água, vidro colorido – tamanhas e tantas que só do miradouro da Vitória, contámos mais de 60!
Porque é que o Porto tem tantas clarabóias?!
Uma vez instalada a paixão, foi tempo de procurar a resposta à pergunta do Paulo. Tal como suspeitava, não existe uma bibliografia consistente sobre o tema. Encontrei, contudo, um livro na biblioteca da FAUP que, qual clarabóia da história do Porto, iluminou a minha pesquisa.
Nesse livro, o Professor F. Barata Fernandes analisa a evolução da habitação burguesa portuense desde a época medieval até ao século XIX.
É interessante pensar que a burguesia, não obstante orgulhosa de o ser, tinha também a pretensão de ascender socialmente; e que essa pretensão se reflectia, naturalmente, nos seus locais de trabalho e de habitação. Ao passo que a casa medieval, construída de forma orgânica, essencialmente funcional e sem considerações de carácter colectivo (o planeamento urbano era inexistente), a casa do Porto iluminista (a partir do século XVIII até metade do século XIX) reflecte claramente outras necessidades burguesas.
É uma casa igualmente estreita e comprida, mas que cresce em número de pisos (e, consequentemente, em altura), para acomodar a existência de uma loja / oficina no rés do chão e a “casa” propriamente dita nos restantes pisos. Esta maior amplitude de espaço exige um aprumo das soluções de iluminação e assim nasce a clarabóia, que ilumina de forma natural o vão de escadas, à volta do qual a casa se organiza.
A habitação da segunda metade do século XIX é já pensada não apenas ao nível da “rua” em que se insere mas de todo o quarteirão, e monofuncional (isto é, separa-se definitivamente o local de trabalho do local de habitação). Essas duas características são pilares evolutivos fundamentais, uma vez que, se por um lado se vê uma uniformidade na construção das habitações, por outro lado procuram-se soluções inovadoras que distingam claramente o nível social de cada dono. Daí a diversidade de revestimentos de fachadas, motivos decorativos nos gradeamentos, desenho de cantarias e… de clarabóias!
Existem outras hipóteses não exclusivas sobre a diversidade das clarabóias, para lá do desejo de distinção da classe burguesa portuense.
A clarabóia era um desafio arquitectónico imenso, e o foco prolongado na construção funcional deste objecto poderia causar, por consequência, o aumento do sentido estético no mesmo.
E podemos especular se a isso não se juntaria, também, o brio dos artesãos envolvidos, e da sua eventual vontade de deixar uma marca própria, distinta, nas clarabóias que pelas suas mãos passavam.
Respostas definitivas não existem, mas creio que estas três hipóteses – desejo de distinção da classe burguesa portuense, o foco estético como consequência do desafio arquitectónico e o brio profissional dos artesãos – satisfazem de alguma forma a pergunta do Paulo.
Uma coisa, no entanto, mantém-se indecifrável; a surpreendente alegria que nos causam estas pequenas aves envidraçadas, permanentemente à espera da hora certa para brilharem aos nossos olhos.