Na viagem à descoberta da rota dos vinhos verdes passei por Amarante, uma das belas cidades perto do Porto. Cidade bela na sua pequena majestade, bem próxima do berço de um dos talentos portugueses mais esquecidos da história: Amadeo de Souza Cardoso. Amadeo, génio absoluto celebrado (e rapidamente esquecido) por toda a parte.
Importa recuar no tempo e recordar a vida de Amadeo de Souza Cardoso…
“Os meus destinos só estão bem comigo”
Amadeo de Souza Cardoso nasceu em Manhufe em 1887 no seio de uma família rural abastada e conservadora, quinto de nove irmãos. Quando passei por Amarante fiz questão de descobrir onde nasceu Amadeo, uma vez que a casa, pelo menos do lado exterior, se encontra tal e qual como nas fotografias antigas:O pai de Amadeo acalentava a esperança de que o filho se dedicasse aos negócios da família, mas Amadeo desde cedo mostrou um sentido de vocação e uma lucidez invulgar, como podemos comprovar na carta que escreve aos pais, quando tinha apenas 19 anos:
“(…) sou um espirito dramático, e a minha alma representa sempre uma tragédia em que sou o único espectador. Meus destinos só estão bem comigo; ou por eles triunfo, ou por eles sou esmagado.”
Amadeo de Souza Cardoso partia, então, para Paris, maior centro cultural e artístico da Europa, oposto solar da sua pequena terra natal.
Amadeo, suportado pela disponibilidade financeira da sua família e pela sua natural ambição, cedo se introduz nos círculos culturais de Paris, convivendo com artistas como Brancusi, Picasso, Gris, Modigliani… personalidades apaixonantes e apaixonadas entre si, que interferem e influenciam a arte umas da outras. Seria um erro, contudo, enquadrar Amadeo de Souza Cardoso como um mero discípulo destes artistas mundialmente reconhecidos, pelo contrário; são vários os historiadores de arte (tais como Laurent Salomé, director artístico do Grand Palais) que defendem que o artista português estaria no epicentro criativo de Paris, influenciando outros artistas tanto quanto estes o influenciavam a si.
Em 1911, Amadeo de Souza Cardoso concorre aos dois grandes certames da época, o XXVIII Salon des Indépendants e o X Salon d’Automne, ambos em Paris, tendo sido selecionado e participado com um total de 12 telas, a maior parte das quais se encontra desaparecida, e que a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, tenta recuperar há anos.
Mais tarde, e com o seu absoluto sentido de carreira
, Amadeo de Souza Cardoso cria um portfólio de 20 desenhos que envia para os Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. Desenhos exóticos (tal como o que apresento de seguida, de 1913, entitulado “The Hawks”), de uma mestria irrepreensível que atravessa vários estilos, que despertam um enorme interesse.
Na sequência disso, e pela mão amiga de Walter Pach, Amadeo participa, em 1913, no Armory Show, tendo representado a 3ª melhor venda da exposição, que abarcava obras de mais de 300 artistas norte americanos e europeus.
Ainda é possível, aliás, ver um quadro de Amadeo de Souza Cardoso na exposição permanente do The Art Institute of Chicago, intitulado “Saut du Lapin”.Aos 26 anos, Amadeo de Souza Cardoso é um artista seguro de si, que já expôs em França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos. Amadeo descreve-se de forma segura e individualizada:
“Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Sou cubista, modernista, abstraccionista? De tudo um pouco.”
“Trabalho, trabalho como um animal”
São grandes as expectativas construídas à volta da sua carreira; interrompidas, no entanto, pela 1ª Guerra Mundial. Amadeo de Souza Cardoso retira-se para a residência familiar, em Manhufe. Esperava-se um guerra curta, mas os dias estendem-se em anos e despontam em Amadeo uma criatividade furiosa, incentivada pelas missivas do amigo Walter Pach, que lhe relata as expectativas dos Estados Unidos em relação aos novos trabalhos do jovem pintor português.
Infelizmente, sonhos e ambições são ceifados pela gripe espanhola. Amadeo de Souza Cardoso morre em 1918, com 30 anos de idade e muito projectos por cumprir. As suas obras últimas mostram, contudo, um estilo totalmente novo que se avizinha dentro de si, como podemos ver nestes quadros, (o da esquerda é mesmo um dos meus preferidos – que fúria, que sensualidade!):O artista é rapidamente esquecido, tendo para isso contribuído a natural resistência da sua viúva, Lucie, em partilhar as obras de Amadeo de Souza Cardoso até aos anos 80, época em que as doou à Fundação Calouste Gulbenkian. E, atrevo-me a dizer que contribuiu igualmente para esse esquecimento a decisão da família de Amadeo em doar parte das suas obras, que estavam na casa de Manhufe, ao Museu de Amarante, cidade secundaríssima num Portugal que asfixiava sob um regime ditatorial opressivo.
Helena de Freitas, historiadora de arte, disse, no belíssimo documentário “Amadeo, o último segredo da Arte Moderna”, que a pergunta “mas afinal, quem era Amadeo de Souza Cardoso?” tem de deixar de existir. Em conversa com um amigo, ele disse-me: “não é a pergunta que tem de deixar de existir, é a resposta que tem de aparecer”. Espero, de alguma forma, ter contribuído para essa resposta com este artigo.